quinta-feira, 13 de setembro de 2012

RESUMO DO LIVRO “SAGARANA” - GUIMARÃES ROSA



ELABORADO PELO PROF. PAULO PIMENTEL



Escrita em 1937, a obra "Sagarana" foi submetida a um concurso literário (Prêmio Graça Aranha, da Editora José Olympio) em que ficou em segundo lugar. O autor usou o pseudônimo de Viator, que, em latim, significa "viandante". A obra trazia quinhentas páginas. Com o tempo, foi reduzida para cerca de trezentas e publicada em 1946.
            O título é um hibridismo (união de dois radicais de línguas distintas): "saga", de origem germânica, significa "canto heróico"; e "rana", de origem indígena, quer dizer "à maneira de" ou "espécie de".
            As estórias desembocam sempre numa alegoria, e o desenrolar dos fatos prende-se a um sentido ou "moral", à maneira das fábulas. As epígrafes, que encabeçam cada conto, condensam sugestivamente a narrativa e são tomadas da tradição mineira, dos provérbios e cantigas do sertão.
            A obra começa com uma epígrafe, extraída de uma quadra de desafio, que sintetiza os elementos centrais da obra - Minas Gerais, sertão, bois, vaqueiros e jagunços, o bem e o mal:
            "Lá em cima daquela serra, passa boi, passa boiada, passa gente ruim e boa, passa a minha namorada."
            Sagarana compõe-se de nove contos:

            O Burrinho Pedrês  
            Sete-de-Ouros, um burrinho já idoso, é escolhido para servir de montaria num transporte de gado. Um dos vaqueiros, Silvino, está com ódio de Badu, que anda namorando a moça de quem Silvino gosta. Corre o boato, entre os vaqueiros, de que Silvino pretende vingar-se do rival. De fato, Silvino atiça um touro e o faz investir contra Badu, que, porém, consegue dominá-lo. Os vaqueiros continuam murmurando que Silvino vai matar Badu. No caminho de volta, este, bêbado, é o último a sair do bar e tem de montar no burro. Anoitece e Silvino revela a seu irmão o plano de morte. Contudo, na travessia do Córrego da Fome, que pela cheia transformara-se em rio perigoso, vaqueiros e cavalos se afogam. Salvam-se apenas Badu e Francolim, um montado e outro pendurado no rabo do burrinho.
            Sete-de-Ouros, burro velho e desacreditado, personifica a cautela, a prudência e a muito mineira noção de que não vale a pena lutar contra a correnteza, se o que se pretende é a travessia. Sete-de-Ouros - no jogo de truco, de "manilha velha" é a manilha mais baixa, após a espadilha, o sete-de-copas e o zape.
            "Macho" é mulo, mu, muar - o burrinho Sete-de-Ouros, protagonista da história. "Carregado de algodão" simboliza o peso da vida, o trabalho do burrinho, e metaforiza a carga dos homens, o peso do mundo, como fardos de algodão. "Preguntei: p'ra donde ia?" - a forma arcaica do verbo perguntar sugere a indagação permanente dos homens, sábios e filósofos: para quê?, por quê?, de onde?, para onde?. "P'ra rodar o mutirão" alude ao esforço coletivo, ao dever de solidariedade que o burrinho cumprirá na sua hora e na sua vez.
            Nos contos, novelas e romance de Guimarães Rosa, há sempre um momento crucial, uma "hora e vez", uma "travessia", ápice da existência, resumo de seu sentido: "...a estória de um burrinho, como a história de um homem grande, é bem dada no resumo de um só dia de sua vida".
            Em "Sagarana" renasce o anônimo "contador de estórias", o homem coletivo que se enraíza nos rapsodos gregos e nas canções de gesta medievais. Desde o início do conto (Era um burrinho pedrês...) esboça-se claramente a atitude ingênua e espontânea da "palavra lúdica", que não aprisiona o falar nos limites rígidos do individualismo, mas se identifica com a palavra anônima e coletiva.
            Seja pela fórmula linguística caracterizadora da narrativa elementar, da fábula, da lenda (Era um burrinho...), tempo e modo verbais que, de imediato, tiram à narrativa o caráter de coisa datada, para projetarem na esfera intemporal do universo de ficção; seja pela mescla de precisão e imprecisão documental no registro do espaço (vindo de Passa-Tempo, Conceição do Serro, ou não sei onde no sertão); seja pela dimensão antropomórfica (forma humana) que é dada à personagem central, o "burrinho-gente", e que situa a narrativa na fronteira entre o real e o mágico; seja pela funcionalidade das cantigas inseridas no fluxo narrativo, tudo isso e muito mais nos revela, no universo da palavra rosiana, a presença do "homo ludens" (homem lúdico), descompromissado com as estruturas convencionais do pensamento lógico.

A Volta do Marido Pródigo
            Lalino, um mulato muito vivo, ajudante numa construção de estrada, não gosta do trabalho. Abandona sua mulher e o meio rural para procurar na capital a felicidade com que sonha: bonitas mulheres à vontade, iguais às que vira em revistas. Depois de algum tempo, cansa-se e fica com saudades: volta. Mas sua mulher, Maria Rita, agora vive com outro. Lalino quer ganhar de volta a consideração do povo e a mulher. Oferece-se uma oportunidade: cooperar como cabo eleitoral do Major, com vistas a ganhar as eleições próximas. Graças a uma série de artimanhas que, no primeiro momento, parecem ser desastrosas para a política do Major, mas que na verdade são intrigas muito hábeis contra o adversário político, Lalino garante o sucesso eleitoral do patrão. Reconcilia-se com a mulher, Maria Rita, que nunca o deixara de amar. A narrativa aproxima-se das novelas picarescas e é um retrato bem-humorado das oscilações interesseiras das convicções políticas do interior.
            Novamente temos um burrinho, animal que, como os bois e cavalos, é presença obrigatória nos contos de Sagarana, que a crítica define como um verdadeiro "tratado de bovinologia". Esses animais são humanizados e alegorizam a própria condição humana.

Sarapalha
            Primo Ribeiro e primo Argemiro, ambos estão com malária, são os únicos habitantes do vau de Sarapalha, lugar dizimado pela epidemia e abandonado pelos demais moradores. Sujeitos a periódicos ataques de febre, cada vez mais sérios, esperam a morte. Saudosamente, evocam a lembrança da bela Luísa, mulher de primo Ribeiro que, ao manifestar-se a malária, tinha-o abandonado por causa de outro. Argemiro, que deseja morrer de consciência tranquila, confessa ao primo que a sua mudança para a casa de Ribeiro foi motivada pela atração que sentia por Luísa. Ribeiro reage amargamente e se mostra implacável: manda Argemiro embora na hora em que começa a agonia.
            A seguinte epígrafe, como em todos os contos de Sagarana, condensa o significado do texto em questão: "Coitado de quem namora!". Argemiro, maleitoso e agonizante, é expulso por ter se apaixonado pela mulher de seu primo. A linguagem do conto acompanha o clima de desgraça e doença, os momentos de tremedeira e desvario dos dois maleitosos, compondo um quadro profundo e sensível da psicologia dos vencidos pela desolação, dos efeitos morais e sociais da maleita.
            Em suas andanças, como médico, pelo sertão de Minas, Guimarães Rosa aprofundou seu contato com o homem primitivo, quase pré-histórico das Gerais, enquanto ia estudando idiomas: francês, inglês, italiano, espanhol, russo, húngaro, grego, latim... Da fusão da oralidade, da fala com a pesquisa do idioma, nasce a linguagem de Rosa - linguagem do sertão e do mundo.

O Duelo
            O capiau Turíbio Todo testemunha a traição de sua mulher com o ex-militar Cassiano Gomes, e faz planos de vingança. Todavia, a bala destinada a matar Cassiano (de costas) não acerta o adúltero, mas sim seu irmão, inocente. Cassiano põe-se a perseguir Turíbio para vingar o assassínio do irmão. Turíbio refugia-se no sertão, acossado por Cassiano. Durante meses trava-se uma luta aferrada, em que cada um é ao mesmo tempo perseguidor e perseguido. Algumas vezes os duelistas se desencontram por um fio. Cassiano cai gravemente doente, mas antes de morrer, ajuda com generosidade um capiau que vive na miséria, chamado Vinte-e-Um. Turíbio, ao saber da morte do adversário, fica contente e põe-se a caminho de volta para sua mulher. Vinte-e-Um, porém, o identifica e mata, cumprindo assim a vingança que prometera a Cassiano.
            O conto pode ser lido como uma alegoria da fatalidade, de inexorabilidade do destino humano. Enquanto os homens se perdem na busca de seus objetivos, de um fim, algo superior dispõe o contrário, o imprevisto.

Minha Gente
            O conto serve de pretexto para a documentação dos costumes e dos infortúnios da vida da roça. Estrutura-se como uma espécie de paródia, meio sentimental e meio irônica, das estórias de amor com final feliz.
            O narrador-personagem, um moço, está de visita na fazenda do tio, empenhado em ganhar as eleições locais. O moço se apaixona por Maria Irma, sua prima, e lhe faz uma declaração, à qual ela não corresponde. Um dia, ela recebe a visita de Ramiro, noivo de outra moça, segundo ela diz, e o moço fica com ciúmes. Para atrair o amor de Maria Irma, ele finge namorar uma moça da fazenda vizinha. Porém, o plano falha - tendo como efeito secundário, não calculado, a vitória do tio nas eleições - e o moço deixa a fazenda. Na visita seguinte, Maria Irma apresenta-lhe Armanda. É amor à primeira vista; ele se casa com a moça, e Maria Irma, por sua vez, se casa com Ramiro Gouveia, "dos Gouveias de Brejaúba, no Todo-Fim-É-Bom".
            Como numa novela, há várias intrigas, episódios e personagens secundários. Numa dessas intrigas, Bento Porfírio comete adultério com a de-Lourdes, casada com Alexandre, o Xandrão Cabaça, que acaba matando o rival. Há, de permeio, o episódio da eleição e da vitória de Emílio do Nascimento, tio do narrador-personagem, pelo partido João-de-Barro, e que serve de pretexto para a retratação das astúcias e intrigas da política interiorana de Minas. Outras personagens se entrecruzam: Santana, o inspetor de ensino e jogador de xadrez; José Malvino, guia e mateiro, conhecedor da natureza e dos costumes do sertão; o Moleque Nicanor, menino da fazenda e que, com oito anos, já sabe pegar, em campo aberto, qualquer montaria, sem cabresto nem milho, só com a esperteza de sua cor e tamanho. Surgem outras personagens como: Bilica, Agripino e tio Ludovico. A ação se passa no Saco-do-Sumidouro, entre fazendas e pesqueiros: o Pau-Preto, o Touno-Tombo, até as Três Barras.
            Nesse conto, o narrador-personagem, que não se identifica nominalmente, impregna sua narrativa de forte dose de lirismo. Observe também os processos de (re)invenção de palavras: por aglutinação (milmalditas) e por justaposição (até-as-pedras-se-encontram).
            Repare, também nas siglas C3BR (cavalo três bispos de rei), P4D (peão quatro de dama), (P)4BD (peão quatro bispo de dama) e P3CD (peão três cavalos da dama). Elas designam, de modo cifrado, os movimentos das peças ou sua posição no tabuleiro de xadrez.

São Marcos
            José (Izé), o narrador, médico novo, récem-chegado no Calango-Frito, embora supersticioso, não acredita em feitiçaria e vive caçoando de um curandeiro e feiticeiro local - o João Mangolô, cuja cafua vive repleta de clientes de suas rezas, seus despachos, mandingas e simpatias. Muitos outros no Calango-Frito estavam envolvidos com todo o tipo de bruxarias; Nhá Tolentina, já muito rica e considerada por seus despachos; Dona Cesária, que atuava em calungas de cera; e até o menino Deolindinho obteve feitiço contra os coques do professor.
            Certo domingo, o narrador (Izé), a caminho de suas visitas ao mato das Três Águas, passa rente à cafua de João Mangolô e, como sempre, zomba do curandeiro e o insulta sem motivo.
            Em outra ocasião, a caminho-do-mato, onde se entretinha na contemplação da natureza, de seus mínimos movimentos, dos bichos, árvores e flores, encontrou-se com Aurísio Manquitola e se entreteve com os casos dos terríveis efeitos e poderes da oração mágica de São Marcos, que o narrador também conhecia. A longa prosa com Aurísio envolveu também outros circunstantes: o Gestal da Gaita, o Compadre Silvério, o Tião Tranjão, o Cypriano, o Felipe Turco, entre outros, cada qual narrando os seus casos de feitiçaria.
            José embrenha-se de novo no mato, absorto na contemplação da natureza, recordando o desafio poético travado com "Quem-Será", que se fazia em meio à natureza, pois os autores, sem se defrontarem, inscreviam os seus versos nos colmos (gomos) de belíssimos bambus.
            Embora curioso, deixou para a volta a surpresa dos últimos versos de seu anônimo adversário, para envolver-se cada vez mais com a poesia da natureza, dos lagos, das flores, das árvores, dos pássaros, das aranhas, das formigas e das taturanas.
            De repente, sem explicação, fica cego. Fica desesperado. Mas como conhecia a fundo os ruídos, cheiros e as mínimas vibrações do mato, dos ventos e dos animais, consegue se orientar. Irritado com a demora da luz, profere, com raiva, a reza de São Marcos. Tomado de fúria, avança numa só e precisa direção: a casa de João Mangolô. Vai guiado pelos ruídos e cheiros que, pouco a pouco, começam a se tornar familiares. Assim, chega, de súbito, na cafua do João Mangolô, e começa a esganá-lo, furioso. Nisso, volta a enxergar. O negro velho havia amarrado, por brincadeira vingativa, uma tira nos olhos de um retrato do narrador, irreverente e zombador, que não acreditava em feitiçaria, ainda que fosse supersticioso.
            Há, no conto, três fábulas: a do feiticeiro e das feitiçarias, a do passeio e da natureza e a dos poemas. O principal ponto de convergência se manifesta na função criativa da palavra. Nas três fábulas, a palavra é valorizada não pela função referencial, de indicar seres existentes fora dela, mas enquanto forma de criação de novas realidades e de conhecimento, que se efetua principalmente graças ao plano da expressão.
            Tanto no poema quanto na feitiçaria é quase irrisório conhecer o significado das palavras e enunciados. Este permanece como algo mais intuído que compreendido. A reza de São Marcos não interessa enquanto significado, sentido - "é melhor esquecer as palavras" - mas como rito, magia, iniciação transcendentalista.
            Em todas as fábulas processa-se, assim, uma volta às origens: através da reintegração total dos sentidos, da aproximação com a natureza, da crença na força da palavra.
            Conta-se, portanto, a história da revelação de um destino que se revela por um conhecimento estético superior do universo, manifesto na imersão sensual/sensorial mágica da natureza. A cegueira de Izé é o pretexto para que o autor faça aflorar outros sentidos, outras potencialidades do ser, que são, a seu modo, a "hora e vez" do narrador, a sua "travessia" no mundo do mistério e do encantamento.

Corpo Fechado
            O narrador, médico em Laginha, vilarejo do interior, é convidado por Manuel Fulô para ser padrinho de casamento. Manuel detesta qualquer tipo de trabalho e, enquanto bebem cerveja, divertem-se, ele contando e o doutor ouvindo as histórias e os casos: do rato que tinha em casa enjaulado e que estava, por artimanha sua, criando amizade a um gato rajado; dos valentões do lugar - José Boi, Desidério, Miligido, Dêjo (Adejalma) e Targino, o mais recente, e que teve a insolência de reunir seu bando e comer carne com cachaça em frente da igreja, numa sexta-feira da Paixão; dos ciganos que ele, Manuel Fulô, teria trapaceado na venda de cavalos; de sua rivalidade com Antonico das Pedras-Águas, o feiticeiro. Manuel possui uma mula, Beija-Fulô, e Antonico é dono de uma bela sela mexicana; cada um dos dois gostaria de adquirir o bem do outro.
            Aparece então Targino, o valentão do lugar, e anuncia, cinicamente, que vai passar a noite, antes do casamento, com a noiva de Manuel Fulô. Ele fica desesperado; ninguém pode ajudá-lo, pois Targino domina o lugarejo. Aparece então o feiticeiro Antonico e propõe um trato a Manuel Fulô: vai "fechar-lhe o corpo", mas exige em pagamento a mula Beija-Fulô, maior orgulho e paixão de Manuel. O trato é aceito.
            De corpo fechado, Manuel Fulô enfrenta o bandido Targino e, para espanto de todos, mata-o com uma faquinha do tamanho de um canivete. O casamento com a das Dor realiza-se sem problemas e de vez em quando consegue emprestada sua antiga mulinha Beija-Fulô, para ostentar, à cavaleiro, sua nova condição de valentão de Laginha.

Conversa de bois
            O narrador da novela ouviu a tragédia, que vai contar ao leitor, de Manuel Timborna, que a ouviu da irara Risoleta, testemunha do acontecido.
            Pelo sertão anda um carro de bois: na frente, Tiãozinho, o menino guia: logo atrás as quatro juntas, com oito bois, que conversam enquanto puxam a carroça: Buscapé e Namorado, Capitão e Brabagato, Dançador e Brilhante, Realejo e Canindé; em cima do carro vai Agenor Soronho. Carregam uma carga de rapadura e, sobre ela, mal acomodado e sacolejando, o caixão com um defunto, o pai de Tiãozinho, ex-guia dos bois do Agenor Soronho.
            Tiãozinho vai chorando: sofre com a morte do pai e com a de Didico, sofre também com o calor, o cansaço e os maus-tratos que recebe do carreiro Agenor, que o faz sofrer, que aguilhoa brutalmente os bois. Por doença e morte de seu pai, Tiãozinho ficara totalmente dependente de Agenor Soronho, que sustenta a família do menino, interessado em se tornar amante da viúva, com quem mantivera já misteriosas relações, durante a doença do pai de Tiãozinho.
            O boi Brilhante vai contando aos demais a estória do boi Rodapião, que morreu por assimilar os processos mentais dos homens. Os bois vão conversando entre si sobre a opressão dos bois pelos homens e a possibilidade de vencerem sua superiori­dade. Sentem-se solidários com o menino.
            Ao entardecer, na ladeira do Morro-do-Sabão, Agenor encontra, espatifado, o carro da Estiva, carreado por João Bala. Havia caído ao tentar subir a ladeira. Agenor consola o carreiro e, em seguida, para provar a Tiãozinho que era um carreiro de verdade, escala a subida em que João Bala fracassara. Sai vitorioso e coloca-se na dianteira do carro, junto aos bois, e cochila. Os bois percebem que o "homem-do-pau-comprido-com-marimbondo-na-ponta" está dormindo. Jogam-se bruscamente para a frente, atropelando-se para derrubar Agenor Soronho, que cai. A roda do carro passa sobre o seu pescoço, sem que se possa saber se morreu dormindo ou se acordou para saber que morria.
            Retomando, sob outro prisma, o conto inicial "O Burrinho Pedrês", este "Conversa de Bois" é uma alegoria sobre a justiça dos animais e a crueldade dos homens.

A hora e vez de Augusto Matraga
            Narrado em terceira pessoa, o conto enfatiza duas constantes da vida do sertão: a violência e o misticismo, na interminável luta do bem e do mal.
            Augusto Esteves, filho do Coronel Afonsão Esteves, das Pindaíbas e do Saco-da-Embira, conhecido como Nhô Augusto e também como Augusto Matraga, é o maior valentão do lugar, briga com todo mundo e maltrata por pura perversidade. Debochado, tira as mulheres e namoradas dos outros. Não se preocupa com sua mulher, Dona Dionóra, nem com sua filha, Mimita, nem com sua fazenda, que começa a se arruinar.
            Já em descrédito econômico e político, sobrevém o castigo: sua mulher, Dionóra, foge com Ovídio Moura levando a filha, e seus bate-paus (capangas), mal pagos, põem-se a serviço do seu pior inimigo; o Major Consilva Quim Recadeiro foi quem levou a notícia da defecção dos capangas. Nhô Augusto resolve ter com eles, antes de matar Dionóra e Ovídio, mas no caminho é atacado, numa tocaia, por seus inimigos, que o espancam e o marcam com ferro de gado em brasa. Quase inconsciente, no momento em que vai ser assassinado, reúne as últimas forças e se atira no despenhadeiro do rancho do Barranco. Tomam-no por morto. É, contudo, encontrado por um casal de negros velhos: a mãe Quitéria e o pai Serapião, que tratam de Nhô Augusto, que sara, mas fica com sequelas deformantes.
            Começa então uma nova vida, no povoado do Tombador, para onde levou os pretos, seus protetores. Regenera-se e, esperando obter o céu, leva uma vida de trabalho duro, penitência e reza. Arrependido de suas maldades, ajuda a todos, e reza com devoção: quer ir para o céu, "nem que seja a porrete", e sonha com um "Deus valentão".
            Passados seis anos, tem notícias de sua ex-família através de Tião da Thereza: a esposa, Dona Dionóra, vive feliz com Ovídio, e vai casar-se com ele; Mimita, sua filha, foi enganada por um cometa (espécie de caixeiro viajante) e caiu na perdição. Matraga sente saudades, sofre, mas se resigna.
            Certo dia, aparece o Joãozinho Bem-Bem, jagunço de larga fama, acompanhado de seus capangas: Flosino Capeta, Tim Tatu-tá-te-vendo, Zeferino, Juruminho e Epifânio. Matraga hospeda-os com grande dedicação e admira as armas e o bando de Joãozinho Bem-Bem. Mas se recusa a acompanhar o bando, mesmo convidado pelo chefe e não aceita qualquer ajuda dos jagunços. Quer mesmo ir para o céu.
            Totalmente recuperado, Matraga despede-se dos velhinhos e parte, sem destino, num jumento. Chega ao Arraial do Rala-Coco, onde reencontra Joãozinho Bem-Bem e seu bando, prestes a executar uma cruel vingança contra a família de um assassino que fugira. Augusto Matraga desperta para a sua hora e vez: intervém em nome da justiça, opõe-se ao chefe do bando, liquida diversos capangas, tomado de verdadeiro furor. Bate-se em duelo singular com Joãozinho Bem-Bem. Ambos morrem - Joãozinho primeiro. Nessa hora, Augusto Matraga é identificado por seu antigos conhecidos.
            Observe a importância do número três durante toda a narrativa: a personagem principal tem três nomes - Augusto Matraga, Augusto Esteves e Nhô Augusto; os lugares em que transcorrem as fases de sua vida também são três - Murici, onde vive inicialmente; o Tombador, onde faz penitência; o Rala-Coco, lugarejo próximo a Murici, onde encontra sua hora e vez. Além disso, ele também vive em trios: inicialmente, na praça, ele está com duas prostitutas; em casa, ele vive com a mulher e a filha; depois de ter sido surrado e marcado a ferro, vive com um casal de pretos; e, no final, aparece um último trio: ele, Joãozinho Bem-Bem e o velho a quem protege.

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